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Deus e o Estado na disputa do poder

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Silas Malafaia, Magno Malta e José Sarney

Vivemos numa democracia. Não é o melhor dos mundos, mas entre os países ocidentais parece ser a opção de governo mais satisfatória. Nossa democracia representativa tem diversos problemas, entre eles o fato de todo espaço de poder ser um espaço de disputa pelo poder. Nesse caso, para haver igualdade é preciso destinar espaço e voz para todos. Atualmente, um dos espaços de disputa mais visíveis é a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados.

Quando falamos de Direitos Humanos geralmente nos referimos a minorias historicamente marginalizadas: mulheres, negros, indígenas, deficientes, homossexuais, transexuais, entre outros. Gênero, raça, etnia e sexualidade parecem elementos complexos quando juntos, mas essencialmente estamos falando de diferenças. Do que é diferente do dominante: o homem branco heterossexual religioso que não possui limitações físicas ou psíquicas. É preciso que o Estado aprove políticas públicas que iguale todos os cidadãos. Para a construção de uma sociedade justa e igualitária é preciso que o diferente tenha espaço pleno, que as leis não sejam centradas no dominante, que historicamente é quem faz as leis e quem rege os três poderes do Estado. Como disse Carlos Orsi no texto de sexta-feira para o Amálgama: “é preciso uma atitude justa, objetiva e aberta diante da diferença”.

Por causa dessas minorias, dentro de uma democracia a voz do povo não é a voz de Deus. Porque Deus não está (ou não deveria estar) no Estado. Apenas o Estado laico pode garantir condições básicas de igualdade entre todos os grupos sociais. Por isso, a luta pela laicidade do Estado não é apenas dos movimentos sociais ou de grupos específicos, é importante para qualquer pessoa que deseja a efetiva ampliação da democracia brasileira.

Quando colocamos na pauta do debate assuntos controversos como casamento igualitário, adoção de crianças por casais do mesmo sexo ou a legalização do aborto, precisamos estar preparados para ouvir como argumentos contrários absurdos do tipo: “Se dois homens ou duas mulheres podem casar, por que eu não posso casar com meu cachorro?” ou “Acho muito fácil você que nasceu ser a favor do aborto”. Porém, sempre há também quem invoque motivos religiosos. E aí está nosso calcanhar de aquiles atual. Setores religiosos influenciam cada vez mais o debate político e as decisões do Estado que, obviamente, deveria ser laico.

Fabiano Camilo, num texto de 2011 aqui no Amálgama, disse que “um dos problemas que inviabilizam o debate com os setores conservadores é certamente o reduzido nível intelectual do conservadorismo brasileiro. Ignoram e distorcem os fatos; insistem em repetir incansavelmente argumentos ilógicos há muito refutados. não respondem perguntas; não tentam, porque não conseguem, contestar os argumentos contrários – quando não usam e abusam do cinismo.” Acredito que esse discurso raso, que estabelece o que é pecado ou não, é proposital. É mais fácil lidar com a opinião pública reduzindo o debate e construindo conceitos perversos como a “heterofobia”. É difícil convencer as pessoas de que certas mudanças sociais não afetarão em nada a vida delas, porém é muito fácil convocá-las para lutar pelo status quo que tão bem conhecem.

Uma das piores propostas atuais dos grupos conservadores e religiosos é a realização de plebiscitos para decidir questões como casamento igualitário ou a legalização do aborto. Nesse ponto, parecem defender o princípio da maiocracia: se a maioria é contra, então a lei nunca será aprovada. Porém, isso significa rifar direitos humanos, significa negar cidadania e autonomia a diversas pessoas. Porque os direitos plenos das minorias também devem ser garantidos.

Não é à toa que diversas vitórias de grupos minoritários estão ocorrendo por meio de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), porque juridicamente não há nada que impeça pessoas do mesmo sexo de se casarem ou adotarem crianças, por exemplo. O que há no Congresso Nacional é um grande ranço de preconceito e uma grande disputa por setores estratégicos, empacando o debate e a discussão sobre diversos temas.

Enquanto Marco Feliciano (PSC-SP) e o Partido Social Cristão articulam e conseguem a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias – justificando seu discurso de luta contra o pecado, em defesa da família homem+mulher=filhos, menosprezando outras religiões –, no Senado, Blairo Maggi (PPS-MT), o maior produtor de soja do país, ganhador da Motosserra de Ouro do Greenpeace, é presidente da Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle. Os cristãos conservadores que conquistam votos pregando o ódio a grupos minoritários e os grandes latifundiários estão exatamente onde querem estar, porque atualmente os movimentos sociais são reativos e porque o Executivo tem acordos políticos com esses dois grupos e evita qualquer tipo de crítica ou manifestação contrária.

Vivemos tempos binários. Ou se está do lado deles ou contra eles. Porque os discursos são dicotômicos. Quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) declara que é favorável à descriminalização do aborto até a 12ª semana por desejo da mulher, o presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família, senador Magno Malta (PR-ES), declara que a decisão vai contra os direitos à vida. Alguém acha que o CFM é contra a vida? Quem ou o que está ameaçando a família a ponto de existir uma frente parlamentar em sua defesa? São nesses termos rasos que o debate sobre aborto está colocado no país, como se devêssemos esperar Jesus vir e decidir quem é a favor da vida. A discussão não avança pelo campo da autonomia feminina ou da desigualdade social que permite a algumas mulheres realizarem um aborto e outras não.

O fato é que os religiosos vêm em todas as frentes no Congresso Nacional, e é preciso que a sociedade realmente se mobilize na defesa do Estado laico. Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), membro da bancada evangélica, que estende às organizações religiosas a prerrogativa de contestar a constitucionalidade das leis no STF, por meio das Ações Diretas de Constitucionalidade (Adin). Não basta ter partidos denominados cristãos no Congresso, é preciso também questionar a constitucionalidade de nossas leis sob a luz da fé.

Não avançaremos enquanto a discussão estiver centrada em valores religiosos. A ética da democracia não pode ser regida seguindo princípios que não sejam laicos. Entretanto, o discurso do pecado e da justiça divina na terra continuará sendo usado, porque, se não aceito o diferente, me coloco acima dele, me sinto melhor que ele, tenho a sabedoria divina do certo e do errado. E sempre sei o que é o certo para a vida dos outros, mesmo que não tenha nenhuma influência na minha. É triste ver o Congresso Nacional mergulhado no obscurantismo e no conservadorismo, mas é preciso acreditar que esse sempre pode ser o primeiro passo para a pressão por uma proposta de reforma política.

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